Quando o foro privilegiado atua no Brasil

21. 08. 2020

Karen Sagawa

A instituição do foro não é recente. Existe no Brasil desde a Constituição de 1824, quando possíveis crimes cometidos pelos membros da família imperial, ministros e conselheiros de Estado e parlamentares eram julgados exclusivamente pelo Senado. O instituto perdurou, adaptando-se e subsiste na vigente Constituição Federal de 1988. O Ministro Luís Roberto Barroso exemplifica alguns dos dispositivos em trecho de acórdão que julgou a Ação Penal 937, em 03 de maio de 2018 no STF (Supremo Tribunal Federal):

“O foro especial está previsto em diversas disposições da Carta de 1988. Vejamos alguns exemplos. O art. 102, I, ‘b’ e ‘c’, estabelece a competência do STF para “processar e julgar, originariamente, (...) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”, bem como “os Ministros de Estado e os Comandantes Militares, os membros dos Tribunais Superiores, os membros do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”. O art. 53, § 1º ainda determina que “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Já o art. 105, I, ‘a’, define a competência do STJ para “processar e julgar originariamente, nos crimes comuns, os “Governadores dos Estados e do Distrito Federal”, e, ainda, “os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais”. E o art. 29, X, prevê “o julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça”.” (grifos nossos)

Resumidamente, as competências (aptidão/poder dos tribunais em julgar determinado assunto) se dividem em:

  • Supremo Tribunal Federal: julga o presidente da República, vice-presidente, ministros do governo, deputados federais, senadores, ministros do Supremo e comandantes militares;
  • Superior Tribunal de Justiça: cuida de processos contra governadores e desembargadores (juízes de segunda instância);
  • Tribunais Regionais Federais: responsáveis por analisar processos contra juízes federais e prefeitos (apenas em caso de desvio de recursos federais);
  • Tribunais de Justiça: julgam deputados estaduais, membros do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e prefeitos
    obs: o foro privilegiado dos vereadores depende de disposição de Constituição Estadual.

Portanto, a legislação prevê que ocupar determinada posição política ou funcional dentro da máquina estatal confere julgamento em competência distinta - em tribunais específicos. Segundo o ex-promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo Fernando da Costa Tourinho Filho, “há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria gozam elas de foro especial, isto é, não serão processados e julgados como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada”.

A justificativa para o foro privilegiado se baseia em impedir que as funções exercidas por agentes públicos sejam prejudicadas por acusações motivadas por interesses políticos. Logo, a proteção é concedida ao cargo, não ao indivíduo. Ao deixar o cargo, em princípio, perde-se o foro. Segundo o advogado Eugênio Pacelli, o foro tem como função fazer com que casos envolvendo políticos sejam julgados por tribunais menos suscetíveis a pressões externas.

No mesmo julgamento do STF em 2018, a Corte restringiu a aplicação do foro para deputados federais e senadores. Firmou-se a seguinte tese:

AP 937 QO - (i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. (grifo nosso)

Embora tenha ocorrido intenso debate no STF para se firmar a tese acima - delineada em um acórdão (decisão “final” proferida sobre um processo por tribunal superior, que funciona como paradigma para solucionar casos análogos) de 429 páginas com votos da ministra Cármen Lúcia, presidente da Corte à época, Rosa Weber, Edson Fachin, Luiz Fux, Celso de Mello, Marco Aurélio, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes - a sua adesão plena ainda encontra barreiras nos tribunais.

No caso das “rachadinhas”, ação proposta pelo MP do Rio de Janeiro que investiga suposto esquema de prática ilegal de retenção de salários no gabinete de Flávio Bolsonaro, atual senador e à época deputado estadual do Rio de Janeiro, o entendimento da 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ foi de conferir ao político os efeitos do foro privilegiado, em clara dissonância com a tese do STF. “A decisão desta Câmara Criminal reconhecendo a permanência da qualidade de parlamentar não havendo interrupção de mandatos legislativos, um na área estadual e outro na área federal pode ser inédita, a desafiar os recursos adequados, mas não absurda, inadequada, desrespeitosa ou ofensiva à jurisprudência consagrada do Supremo”, escreveu o desembargador Antônio Carlos Nascimento Amado, que assinou o ofício enviado ao STF.

Há ainda outros problemas com relação a aplicação do foro privilegiado. Por exemplo, não se sabe qual tribunal deve determinar a busca e apreensão em gabinete no Congresso quando o parlamentar sob investigação não possuir prerrogativa de foro. Não há, ainda, entendimento pacificado se esta determinação pertence ao STF ou a outro juízo.

Por compreender cerca de 55 mil pessoas – 38,4 mil garantidas pela Constituição Federal, 15,5 mil por Constituições Estaduais, segundo levantamento do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado efetuado em 2017 - o foro privilegiado atrai bastante interesse público, principalmente no tocante aos benefícios, devidos ou não, concedidos às autoridades do país. O foro privilegiado é geralmente associado à impunidade de políticos, pois os crimes podem prescrever (perda do direito estatal de punir o transgressor da norma penal, dado o decurso do tempo), já que o ritmo de julgamento dos tribunais superiores é mais lento do que o da Justiça de primeira instância.

No entanto, não faltam tentativas de acabar com o instituto. A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 10-2013, do senador Alvaro Dias, tem como proposta acabar com o foro privilegiado em caso de crimes comuns para todas as autoridades federais, tendo como exceção apenas os chefes dos três poderes da União: presidente do Supremo Tribunal Federal; presidentes da Câmara e do Senado; e presidente e vice-presidente da República. Caso seja aprovada, responderão a processos iniciados nas primeiras instâncias da Justiça comum. A PEC foi aprovada por unanimidade no Senado e atualmente aguarda votação na Câmara dos Deputados.

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